
Já o saxofonista Joe Lovano não teria pudor em tocar a popular canção de Dan Fisher, imortalizada por Billie Holiday. Ele programou um bocado de peças antigas que já têm para lá de seis décadas, entre elas três gravadas pelo trompetista Miles Davis em 1949, no histórico álbum The Birth of Cool, que ajudou a formatar a "cool school" na costa oeste americana. Lovano gravou, no ano passado, essa suíte como tributo a dois estilos de jazz, o cool e o free, tendo como arranjador o compositor erudito Gunther Schuller, prêmio Pulitzer de composição, que tocou no disco de Miles e cunhou o termo "terceira corrente", ao propor uma fusão híbrida da técnica clássica e jazzística. Lovano é seu discípulo. Isso ficou claro no show de domingo, 28, no auditório Ibirapuera. Ninguém de seu noneto ousou sair da linha. Por vezes era possível imaginar que se estava ouvindo a antiga orquestra de John Green, não fosse uma ou outra escapadela do trompetista citando Tom Jobim em meio à suíte de Schuller. Ainda como homenagem aos gênios, Joe Lovano tocou Ask Me Now, do pianista Thelonious Monk, que, nunca é demais lembrar, também foi parceiro musical de Miles Davis. Lovano, porém, é reverente demais. Introduziu o tema por três saxofones, eclipsando o piano, foco da composição de Monk. Comparando com a gravação de 1965 (em Solo Monk), o arranjo de Joe Lovano revela falta de entendimento do legado de Monk, mas valeu a intenção, mesmo com a pouca ousadia do saxofonista.
Não se pode dizer que o trombonista Conrad Herwig, última atração da noite de segunda, seja menos equivocado. É bom instrumentista, mas, como arranjador, faz cruzamentos insólitos que parecem pitbulls sonoros. Imagine, por exemplo, So What, a provocação suprema de Miles Davis, tocada por um grupo de salsa ou em ritmo de rumba. Foi esse o desastre que aconteceu. Ora, Miles gravou So What há meio século com toda a sutileza que se pode exigir de um músico (no histórico Kind of Blue), acompanhado na empreitada pelo pianista Bill Evans e o baixista Paul Chambers. Herwig não tinha acompanhantes do mesmo nível no show. Recorreu, então, à lenda do trombone Raul de Souza para salvar Miles Davis. O brasileiro é ótimo, mas não faz milagres. Herwig partiu para outra. Antes, deixou seu percussionista cubano Pedro Martinez cantar, acompanhado de sua conga. Pedrito arriscou até alguns comentários sobre a intolerância da igreja católica contra as santerias, mensagem subliminar encaixada na letra de sua música. A proposta de Herwig, porém, era explorar a latinidade existente na música de Miles Davis, John Coltrane e Wayne Shorter. Como uma experiência genética que não deu certo, os três amigos do jazz perderam as feições e ficaram com cara de Paquito de Rivera pós-aplicação de botox. Nem tudo é permitido no jazz. Até Miles sofreu em sua fase fusion. Felizmente recuou a tempo. (Antônio Gonçalves Filho para O Estado de São Paulo).